Segundo estudo, o Brasil tem 10,7 milhões de pessoas com deficiência auditiva e, dessas, somente 7% têm ensino superior completo. A nossa aluna, Jéssica Campos, faz parte dessa porcentagem e, muito além de conseguir concluir a graduação, também deixa um legado para o curso de Estética e Cosmética.
Jéssica se formou recentemente no curso tecnólogo em Estética e Cosmética da Pitágoras São Luís e desenvolveu um glossário de libras específico para o curso. Acompanhe a matéria produzida por ela para a Revista Marie Claire e conheça sua história 🤗
Nasci e cresci em São Luís, no Maranhão, e fui uma garota tímida, quieta, com muita dificuldade para me comunicar. Surda de nascença, demorei para desenvolver a fala e não entendia muito bem o que acontecia a minha volta. A partir dos 4 anos iniciei o tratamento com fonoaudiólogo para desenvolver a fala e, aos 9, comecei a estudar Libras, a Língua Brasileira de Sinais, fundamental para que eu pudesse estudar e me comunicar com as pessoas de forma mais efetiva.
Sempre gostei de estudar e para chegar à faculdade tive muito incentivo da minha mãe, Luzimar Campos, dona de um salão de beleza e que sempre foi a minha inspiração de força e determinação. Minha mãe conta que quando eu tinha uns 2 anos a família estranhou o fato de eu não desenvolver a fala. Ela me levou então a um otorrinolaringologista que solicitou um exame chamado audiometria do tronco cerebral. Na época, a cidade mais próxima com esse tipo de exame era Fortaleza. Minha mãe juntou dinheiro e fomos para lá. Quando o médico contou a ela que eu era surda e que nunca ia escutar, ela se desesperou. Achou que eu não ia conseguir estudar, não ia conquistar nada, mas ela acabou sendo figura indispensável para todas as conquistas que alcancei.
Quando iniciei o jardim de infância as dificuldades foram grandes. Não conseguia por nada acompanhar o ritmo das outras crianças. Minha irmã, que estudava na mesma escola que eu, é quem respondia minhas atividades e as perguntas que faziam pra mim. Até que, uma vez, a escola recebeu a visita de profissionais de uma instituição de ensino do governo estadual, que trabalhava com acompanhamento e desenvolvimento de pessoas surdas.
Ao conhecerem minha história, eles entram em contato com minha mãe e a convidaram para conhecer o trabalho deles. Só então ela entendeu que eu precisava aprender uma língua que me permitisse a comunicação com surdos. Se eu permanecesse apenas com a fonoaudiologia, não iria conseguir me comunicar nem com os ouvintes e nem com os surdos.
Assim, mudei para a nova escola e comecei o jardim de infância novamente. A escola era distante de casa, havia um gasto diário com transporte e a situação financeira da minha família estava bastante difícil na época. Por isso, minha mãe me levava para a escola e ficava esperando até a hora da saída. Para ocupar o tempo de espera, ela começou a fazer um curso de cabeleireira e começou a trabalhar em casa. Desde nova eu acompanhei a rotina de trabalho dela de perto e a ajudava no que podia. As clientes gostavam tanto do meu trabalho que às vezes preferiam fazer os procedimentos estéticos comigo. Essa proximidade despertou em mim uma paixão pela área, pela relação com os clientes e pelo poder que a beleza tem de tornar as pessoas seguras, confiantes e empoderadas. Já nessa época, antes de iniciar a faculdade, eu me questionava sobre o acesso de pessoas com deficiência a inúmeros locais, inclusive nos salões, na maioria das vezes não adaptados para suas necessidades.
Lembro que queria fazer cursos voltados para área de cuidados com a beleza, e foi minha mãe quem mais uma vez me deu total apoio para correr atrás dos meus sonhos. Junto comigo ela procurou as instituições que ofereciam cursos na área, mas nenhuma me aceitou. Alegavam não ter intérprete para atender às minhas necessidades. Mas ela não desistiu. Se matriculou junto comigo, e apesar das dificuldades, me ajudou a concluir os cursos de depilação e design de sobrancelha. Quando terminei o ensino médio, fiquei muito entusiasmada com a possibilidade de entrar na faculdade.
Minha primeira opção foi a pedagogia, que sempre me interessou. Pouco tempo depois, no entanto, percebi que a minha escolha foi motivada muito mais pela comunidade surda, que nos impulsiona a entrar na área da educação. Acabei trancando o curso e me matriculei naquela que era a minha verdadeira paixão: estética e cosmetologia.
O começo não foi fácil e enfrentei muitos obstáculos para realizar o sonho da graduação.
No começo, tinha muita dificuldade de conhecer as pessoas, fazer amizades e criar laços com os outros alunos. É um processo difícil para qualquer um, mas pode ser realmente doloroso para quem tem alguma deficiência. Com a chegada de Rian, um tradutor e intérprete de Libras contratado pela Faculdade Pitágoras de São Luís, onde estudei, foi possível me comunicar melhor e iniciei, assim, o relacionamento com parte da turma. Vale dizer que há sempre algumas pessoas que se mantém mais distantes, que parecem ter receio de se aproximar e conversar comigo. Mas, no geral, fui bem acolhida e recebida por todos.
Carrego um grande carinho pelos professores e pelas amigas que construí durante os anos de faculdade. Outro obstáculo que enfrentei foi a falta de termos específicos da área que, embora sejam usados com frequência, não estavam contemplados em Libras. A palavra argila, por exemplo, não tinha um sinal específico, o que atrapalhou muito o meu aprendizado. Com a ajuda do Rian, decidi ver essa dificuldade como uma oportunidade de fazer algo que pudesse contribuir também com todos os deficientes auditivos. Juntos, Rian e eu elaboramos um glossário específico com sinais da estética e cosmética, ou seja, criamos sinais próprios para conseguir entender o conteúdo e acompanhar as disciplinas.
Esse passo foi muito importante para que eu pudesse acreditar em mim mesma e reforçar que posso sonhar grande.
Hoje, quero fazer pós-graduação e continuar estudando e me qualificando. Além disso, estou realizando o sonho de empreender e criar um espaço focado para surdos, ouvintes e outras pessoas com deficiência. Mais uma vez, com incentivo e apoio da minha mãe, inaugurei, agora em setembro, o Librastetic, uma esmalteria e estúdio de beleza, onde ofereço serviços de sobrancelha, manicure, pedicure, hena, depilação e limpeza de pele, em São Luís.
Meu objetivo, desde que iniciei a faculdade, sempre foi atender um público que ainda tem dificuldades na comunicação em alguns estabelecimentos de beleza e estética, e ao conseguir falar com eles e dar a atenção que merecem, quero ajudá-los a se sentirem bem, felizes, acolhidos e principalmente ouvidos. Tenho certeza que assim poderei também contribuir para que as aceitem como são, sem nenhum tipo de discriminação. Por isso, quero aproveitar tudo o que aprendi para ajudar a mudar o conceito de beleza, muitas vezes visto de forma pejorativa ou fútil pela sociedade.
Com o meu trabalho, pretendo tornar os procedimentos estéticos um meio para que as pessoas que passaram por dificuldades parecidas com as minhas, e até situações de preconceito e rejeição por conta de suas deficiências, possam se sentir empoderadas.
Acredito que ser uma surda graduada e com o meu próprio negócio também pode mostrar para as pessoas que o caminho é muito mais difícil e nem sempre conseguiremos sozinhos, mas que é possível.
E que nossa história pode ser um instrumento de inclusão social efetiva, permitindo ao ser humano sentir-se mais independente, autônomo e seguro.
Em todas as áreas, é muito importante tratar as pessoas com deficiência como consumidores, pacientes, alunos e, principalmente, como cidadãos. E espero que o glossário que desenvolvemos para os termos de estética em Libras possa ajudar na inclusão de outros surdos, para que possam ampliar seus conhecimentos na área e também entender que há lugar para eles em qualquer segmento, nas faculdades, no mercado de trabalho e também nos salões.